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segunda-feira, 4 de abril de 2016

Reféns é que são elas

Esse cara de preto aqui no canto da foto, de costas, sou eu!

Parecia um dia comum. Acordei, tomei banho, enverguei uma roupa comum (camiseta e calça jeans), preparei a mochila e sentei-me em um banquinho para calçar os tênis. Depois, fiz que me levantaria, mas continuei sentado. Suspirei e olhei para minha esposa, que estava me esperando para se despedir. Ela me deu força; realmente eu não estava com quase nenhuma energia para passar mais um dia de trabalho. Após um caloroso beijo, respirei fundo e pus-me a caminho.

Ônibus, metrô, baldeação, metrô, ônibus. Uma hora de caminho, tendo como companhia "Os Três Mosqueteiros", de Alexandre Dumas. Enfim, eu havia chegado. Era dia 30 de março, eu estava pronto para começar mais um expediente. E, para quem não me conhece, trabalho no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mais especificamente no Fórum Regional XV - Butantã, na zona oeste da capital paulista.

Coloquei a indisposição de lado, como sempre faço quando assim estou, e comecei a trabalhar. O rendimento estava normal para um dia comum, processos, liminares, alvarás, guias, ofícios, despachos, sentenças. O trabalho no gabinete de uma juíza de Vara de Família e Sucessões não pára, e é um caso mais complexo que o outro. Quanto mais complexo, mais atenção, e quanto mais atenção, mais trabalho e esforço. E quanto mais trabalho e esforço, menos energia.

Pausa. Hora do almoço, para relaxar, conversar com os colegas, e, principalmente, comer. 

Voltei do almoço. Na sala de audiências, uma audiência deu início para tratar sobre pensão alimentícia. No gabinete, onde trabalho, retomei minhas atividades. Foi quando olhei o celular e vi algumas mensagens no WhatsApp. Comecei a respondê-las, mas, no meio de uma frase, ouvi um estampido e um barulho de vidro se espalhando pelo chão. Gritos, mas não eram de pânico. Na verdade, parecia mais com dois homens brigando.

De repente, pela porta do gabinete, eu vejo uma multidão correr desesperada. Muitas pessoas entraram onde eu estava e, sem entender, eu me levantei. Fecharam a porta e disseram, desesperadas: "Estão atirando em todo mundo!". Então, encaminhei todos para a sala de audiência, que tinha mais espaço (o gabinete é anexo à sala de audiência). Todos para o chão, advogados, partes, escrevente de sela, eu, minha juíza, e todos que entraram no gabinete.

Em silêncio, ouvimos um homem correr pelo corredor, derramando algo no chão. Depois ele correu e entrou na sala ao lado daquela onde estávamos. Uns gritos abafados, mais gente correndo pelo corredor. Eu e a escrevente de sala corremos para as portas para trancá-las, depois voltamos a deitar no chão. Por lá ficamos, esperando por qualquer coisa que pudesse acontecer. Eu pensava em minha família, na minha esposa, e na conversa que tive com esta uma noite antes: "já parou para pensar que em todos os anos passamos pelo dia de nossa futura morte, e nem nos damos conta disso?". Um cheiro de gasolina estava impregnando o ar, o que dava uma sensação ainda mais desesperadora.

Uma das pessoas que estavam na sala ligou para a polícia, porque não sabia que já tinha polícia no fórum. Outra estava debaixo da mesa, com o pânico paralisando sua face. Jamais me esquecerei daquela expressão, que não se acalmou nem com minha mais serena e tranquila fala. 

O telefone tocou. A escrevente, se arrastando, foi até ele. Era alguém avisando que o invasor estava na sala de audiência da Vara da Violência Doméstica, que já estava cercada pela polícia. Levantamos todos e abrimos as portas. O cheiro de gasolina e querosene entrou quase como agulhas em nossas narinas. Na sala ao lado, no fim do corredor, a Polícia Militar e alguns da Polícia Civil falavam com o invasor. Então, veio a notícia de que ele fazia de refém a juíza que lá trabalhava, Dra. Tatiane Moreira Lima. 

Como uma aglomeração de pessoas estava tumultuando os serviços, vesti o colete da brigada de incêndio e dirigi-me ao chefe da segurança, cuja ordem passada foi a de evacuação do prédio. Imediatamente, conforme treinamento recebido, comecei o plano de abandono, encaminhando as pessoas para as saídas de emergência. 

Evacuado o local, finalmente abandonei o prédio. Na rua, repórteres, policiais, agentes de trânsito, transeuntes, corpo de bombeiros. Muita preocupação. Eis que tivemos a notícia de que o invasor fora preso, e acabara de deixar o prédio em uma viatura da Polícia Militar. Como brigadista, ainda mantive a ordem, ajudando a conter os ânimos das pessoas, impedindo também que entrassem no prédio para buscar seus pertences, uma vez que o local seria periciado.

O expediente encerrou-se mais cedo naquele dia. E no dia seguinte, não trabalharíamos, pois o prédio passaria por limpeza e reforma onde havia dano. 

Resumo dos fatos: um homem, acusado de agredir a companheira, invadiu o fórum carregado de produtos altamente inflamáveis. Começou o ataque incendiando a entrada, ocasião em que havia conseguido adentrar correndo. Um segurança, atingido pelas chamas no braço, ainda tentou pará-lo com o disparo de uma arma de fogo, errando o alvo e atingindo o encosto de vidro da escadaria. O invasor, tomado por forte emoção, correu pelos corredores do fórum na direção da sala da juíza, jogando gasolina por onde passava. Pelo que algumas pessoas disseram, ele tentou riscar um fósforo, mas não atingiu o rastro de combustível, talvez porque estivesse emocionado demais. Correu para o gabinete da Dra. Tatiane, agarrou-a pelo pescoço, jogou-a no chão e despejou sobre ela uma quantidade abundante de produto químico, ameaçando tocar fogo nela e nele. Estava completamente descontrolado, mas, naquele momento, sentia-se um deus. Era senhor da situação, e parecia gostar daquilo. Mandava ela dizer coisas. Ela dizia. Mandava ela se calar. Ela calava. Fez algumas gravações (nas quais vocês todos já devem ter visto). Disseram que ele até tentou acender o isqueiro, mas este estava molhado com a gasolina que ele mesmo havia jogado. Outros disseram que ele não tentou acender nada. O próprio criminoso "confessou", depois de sua prisão, que não pretendia matar a juíza. 

Percebam que ele estava respondendo a um processo de violência doméstica contra a mulher. Percebam que a juíza era mulher. Percebam que ele se sentiu poderoso por dominar uma mulher. Agora reflitam: se fosse homem o magistrado, será que ele teria a mesma coragem?

Ultimamente, atravessamos um período obscuro em nosso país, onde a intolerância e ignorância predominam e tentam calar vozes que pedem por ajuda. O que aconteceu com a nossa magistrada é um retrato do que acontece todos os dias com tantas mulheres. Uma violência escrachada, escancarada, direta ou indireta, física ou psíquica. Desde assédios nas ruas (por causa de roupas, de maquiagens ou simplesmente por possuírem uma vagina) até socos, chutes, paneladas e ameaças de morte (porque resolveu contrariar as vontades de um homem). Invariavelmente recebem salários menores, e são preteridas porque "levam para o pessoal", "só fazem fofocas", "são desequilibradas". Não devemos esquecer também que elas podem ter filhos, o que não é interessante para sua carreira profissional. 

E percebendo que isso é tão comum que está enraizado e já nem mais parece estranho, ao contrário, é normal, elas se levantaram. E com a internet, buscam espalhar essa ideologia para suas companheiras, para que com elas se levantem nesta luta por igualdade. Mas é na internet que elas encontraram a maior dificuldade de fazer ecoar suas vozes: nós. Homens que não queremos ouvir. Ou que consideram toda essa violência não mais que um "mimimi". E que, inclusive, convencemos outras mulheres a engrossarem nosso coro, pra apontar o dedo e ainda dizermos "Viu? Ela que é mulher concorda!". Nós não estamos afim de pensar. Sequer nos esforçamos pra isso.

Nós, homens, precisamos nos render. Precisamos admitir que há séculos estamos errados, e exterminar essa cultura que violenta e destrói a mulher cada dia que passa. Precisamos admitir que elas estão certas, que a justiça verdadeira é a igualdade plena de gêneros, despida de qualquer preconceito. Libertemo-as, nossas reféns. E que a luta delas angarie vitória, para que todos nós nos beneficiemos ao final, homens e mulheres. 

Porque enquanto existir o machismo, existirá atos como vistos em nosso fórum.
Já o feminismo nunca matou ninguém. Sequer chegou perto disso.

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